Entregamos para todo o Brasil!

 

Arlinn estava em sua cabana quando cinco luzes pulsaram em seu campo de visão.

Ela vivia sozinha no meio da floresta de Kessig, afastada da civilização que a rejeitava e que ela quase morreu protegendo. Os aldeões das vilas próximas sabiam de sua existência e muitos também sabiam de sua condição, mas eles não lhe causavam problemas. Eles a respeitavam, e principalmente, temiam

“É a melhor parte” pensou ela, enquanto descascava batatas. Ela se forçava a comer frutas e legumes, algo que a conectasse com sua parte humana. Carne crua, quente e sangrenta ainda era seu prato predileto, mas ela se esforçava para variar o cardápio, lutando diariamente para ser mais do que uma fera.

Ela ia colocar os legumes na água quente quando as luzes surgiram em seus olhos. Arlinn tonteou e acabou virando a panela, por pouco não queimando seus pés. Ela piscou algumas vezes, mas as luzes, vermelha, azul, branca, verde e preta, pulsavam cada vez mais forte, chamando-a. “Luz preta?” pensou ela, divertida com sua própria observação. Então ela sentiu um puxão em sua alma, como se um anzol tivesse fisgado suas entranhas e estivesse levando-a para outro lugar. Para fora.

Ela espiou pelas eternidades cegas de onde vinha o chamado. Era um local amplamente urbano, mas muito bonito e frio. Arlinn vinha tentando se manter longe de problemas, e também por isso ela evitava transplanar com frequência para planos desconhecidos. A pressão aumentou e ela se segurou no balcão da pia. Ela viu flashes da realidade que a invocava. Anjos, árvores gigantes, monstros, esqueletos, nada que ela já não tivesse visto em Innistrad. Mas o que realmente a deixou curiosa foi ver um grupo de cavaleiros montando lobos gigantes. “Isso é de fato inusitado” pensou ela, largando o balcão e se deixando levar pelo espaço entre os planos. Em sua cabana, a lenha apagou lentamente.

Quando chegou, Arlinn apareceu em uma viela escura e vazia no meio da cidade. As luzes em sua visão haviam sumido, o que era um alívio, mas ela estava com um mau pressentimento. As ruas estavam silenciosas, e a mana do plano estava remexida, bagunçada. Ela caminhou por algum tempo e viu ao longe uma espécie de pirâmide estranha e um pilar de concreto gigante com uma estátua de um dragão no topo. Com alguns saltos Arlinn ganhou os telhados e pode ver que também naquela direção, um portal gigantesco de luz roxa vomitava soldados para dentro deste plano. Ela ouviu gritos, e seu olfato logo captou os odores da guerra.

Seu primeiro instinto foi fugir. Estava sozinha em um lugar desconhecido. Ela já conhecia o suficiente de invasões planares pra saber que não era boa idéia ficar em um lugar como aquele. Visualizou sua cabana em Innistrad e transplanou. Ela quase pôde sentir o cheiro da vegetação de Kessig quando foi arremessada de volta à realidade de Ravnica. Seu estomago revirou, e ela viu surgir sobre si um símbolo dourado estranho. Ela estava presa.

Seu segundo instinto foi se esconder. Ela começou a correr para qualquer lugar que ela pensasse que a levaria para longe do portal, mas quanto mais ela avançava, mais ela encontrava a batalha se espalhando por todos os lados da imensa cidade. Esqueletos azuis de pedra atacavam impiedosamente quem encontrassem. Cidadãos e soldados dos mais variados tipos tentavam conter o massacre. Ela chegou a dar cabo de alguns esqueletos no caminho, mas ela não queria entrar em combate. Ela não conhecia aquelas pessoas, ela não conhecia aquele lugar e estar presa fazia ela querer se esconder e esperar tudo acabar. Ela já tinha vivido o suficiente para saber quando uma luta valia a pena ou não, e ela sabia que aquela luta não era dela. Ela continuou correndo até o esgotamento, e quando encontrou uma área mais arborizada, parou para descansar, recostando-se em uma árvore muito alta e forte. Era uma região bem diferente do restante da cidade, apesar de que Arlinn achou a natureza organizada demais ali. Mas ainda sim era lindo.

Ela estava descansando quando viu acontecer algo inesperado: uma árvore gigantesca começou a ser atacada por pontos azuis muito enfurecidos a algumas quadras dali. Até que a árvore levantou e começou a derrubar as criaturas por si mesma. “Esse mundo é meio louco” pensou ela, ainda sentada. Estava cansada e um pouco confusa. Ela ouviu alguns ruídos vindo dos arbustos, e antes que pudesse ter alguma reação, um pequeno cachorrinho estava cheirando o chão perto dela. Ela conhecia seus primos bem o suficiente para perceber que ele era amigável.

Arte: Ray Richter

Ele se aproximou e Arlinn acariciou sua cabeça. O rabo (três rabos?) dele varria o ar de um lado para o outro, e a velha guerreira se sentiu tranquila pela primeira vez durante seu tempo naquele plano. Ela não entendia porque estava ali ou o que a havia chamado, mas ela sabia que aquele não era seu lugar.

Arlinn ouviu sons de um grupo se aproximando e se escondeu. Colocou o cãozinho em seu colo e segurou seu focinho para que ele não latisse para os passantes. O grupo se aproximou e ela se impressionou com o que viu. Liderando-os, estava alguém que era como ela, mas tinha uma cabeça de leão. Sua pelagem era branca e ele não tinha um olho. Ele era bem impressionante, para um gato. Haviam algumas pessoas em cavalos, e um grupo com armaduras parecidas entre si, variando entre centauros, elementais e finalmente, os cavaleiros de lobos gigantes que ela tinha visto antes de vir para o plano. Um dos que estavam em cavalos desmontou e o grupo seguiu. Uma mulher incrível, de cabelos brancos e manto azul se aproximou flutuando.

-O que você está fazendo Jiang? Temos que acompanhar o Sr. Ajani

-É o Mowu, acho que ele se perdeu. Mowu! Mowu! 

- Arlinn sentiu o cãozinho se debater um pouco em seu colo, mas ela conseguiu fazer ele ficar quietinho.

-Ele é um cachorro mágico Jiang, ele não se perde – disse a mulher, claramente impaciente. O garoto não deu bola.

-Vá na frente, eu encontro vocês em breve. Mowu! Cadê você? Mowu!

A mulher se foi flutuando no momento em que o cão no colo de Arlinn se soltou dela, demonstrando uma força incrível para um cãozinho tão pequeno. Ele correu para o garoto. Era um rapaz magro, com um cajado e um chapéu de palha grande

-Ah, Mowu! Aí está você, o que estava fazendo?

O pequeno cão começou a saltitar e a latir na direção do esconderijo de Arlinn, e ela soube que não poderia se esconder mais. Ela saiu dos arbustos, com a mão direita erguida.

O garoto pareceu desconfiado ao primeiro olhar, mas Arlinn sentiu que ele respirou fundo e deu um jeito de mascarar sua preocupação.

-Olá, eu sou Jiang Yanggu. Parece que o Mowu gostou de você. Obrigado por cuidar dele.

-Eu que agradeço. Eu sou Arlinn. Ele é um ótimo cão, mas parece meio deslocado nesse cenário de guerra. - disse ela, olhando para o cão, que havia se deitado nos pés do rapaz. Cães eram menos poderosos e objetivos que lobos, mas sua lealdade era incontestável.

-Ah, ele está acostumado e é bem corajoso, né, Mowu? - disse Jiang, coçando atrás da orelha do cãozinho. - Você parece ser uma viajante também - disse ele, observando-a - Planinauta, como eles dizem. Nós estamos indo até a parte central da cidade. Ajani está ajudando a organizar a guilda Selesnya para combatermos estes Eternos. Se você for do tipo guerreira, poderia vir conosco. Este plano corre sério perigo.

-Eu não acho que eu ajudaria muito, sou uma simples senhora tentando entender o que está acontecendo. E não me sinto a vontade em seguir ordens de um gato.

O garoto riu gostosamente, fazendo Arlinn se lembrar dos jovens guerreiros que se inscreviam na academia dos cátaros em Thraben todos os anos. Os que ela conhecia estavam todos mortos.

-Bem, você quem sabe – disse o garoto – mas lembre-se que quando a guerra te alcançar, estaremos naquela direção.

O garoto moveu seu cajado e apontou a mão para Mowu, e Arlinn ficou extasiada ao ver o cachorro ficar do tamanho de um elefante. O imenso cão latiu uma vez para ela e se foi levando o garoto que se equilibrava de pé em suas costas.

Ela caminhou na direção em que o grupo de Mowu havia partido. Ela esteve com medo de se transformar para ajudar a combater, mas pelo que parecia, as pessoas daquele plano estavam acostumadas com seres com cabeça de animais. Ela foi caminhando caminhando, logo começou a trotar, correr, disparar na direção do combate. Ela sentiu um outro tipo de chamado, uma necessidade de agir diferente do puxão que a trouxe até aquele plano estranho. Os cabelos em sua nuca se eriçaram, e ela travou a mandíbula deixando os dentes à mostra. Algo tinha estalado em sua mente. Transformou suas pernas e braços e correu ainda mais rápido na direção da luta. Foi pelos telhados mais uma vez e de cima ela viu vários focos de combate, exércitos e tropas organizadas lutando ao lado de pessoas tão incomuns quanto ela. Aquele plano estava usando todas as suas forças contra seus invasores. Arlinn queria ficar de fora, mas a cada momento que se passava ela percebia que isso não seria possível. Se tinha alguém que sabia o que era ter seu mundo invadido por aberrações, esse alguém era ela.

Quando um lobo sem alcatéia não consegue fugir ou se esconder, ele luta até a morte.

Ela pulou do telhado no meio de um grupo que estava tendo dificuldades com alguns esqueletos com lanças e outros guerreiros com cabeça de bode. Ela renovou o sangue dos soldados que estavam no chão, e eles seguiram sua ferocidade rua adentro. Porém os Eternos começaram a fechar um círculo com as lanças em volta de Arlinn e eles tiveram que recuar. Ela ouviu um rugido vindo de algum lugar, e se lembrou do homem leão. Talvez ele precisasse de ajuda, mas ela não podia fazer nada agora. A coisa estava prestes a ficar feia quando de uma rua lateral um grupo de cavaleiros de lobo estourou a formação dos monstros. Era um grupo pequeno, uma dezena, mas eles eram muito organizados. “Organizados demais” pensou ela, sorrindo. A luta equilibrou novamente.

Até que os Eternos com cabeça de bode se posicionaram sobre as mãos e pernas como se fossem sair correndo, e saltaram por trás das linhas de lanceiros, em uma velocidade impossível. Eles atingiram os cavaleiros, derrubando todos de seus lobos, alguns caindo já sem vida. Os lobos gigantes chegaram a destruir alguns dos Cabeça de Bode que aterrissaram por perto, mas ficaram um pouco perdidos sem seus cavaleiros. Arlinn percebeu que a ligação entre eles era forte demais. “Esse é seu problema” disse Arlinn para um dos cavaleiros feridos que havia caído perto dela, “Vocês se acostumaram a tratar seus lobos como cavalos. Está na hora de voltarem a ser lobos”. Arlinn retirou sua saia e sua blusa e jogou sobre o cavaleiro que se recostava em um escombro. Os olhos da maga brilharam com uma luz verde, que logo se espalhou pelos lobos gigantes que estavam ao seu redor. Alguns lobos de tamanho comum também surgiram de algumas ruas ali por perto e se juntaram ao grupo. Ela retirou as selas e as armaduras de cada um deles, deixando-os livres de tudo que não fossem eles mesmos. Os soldados lutavam para segurar a linha enquanto Arlinn formava um círculo com os animais. A velha mulher sorriu e gritou. Seu grito se transformou em uivo conforme ela se transformava, crescendo e criando pelos e garras, tornando-se mais poderosa e completa. Os lobos acompanharam seu uivo, que se tornou alto e poderoso o suficiente para fazer com que os monstros hesitassem em seus lugares. “Então ainda existe alguma consciência neles” pensou ela. Ela decidiu que apelaria para essa consciência. Eles sentiriam medo.

Arlinn correu com o vento, suas patas rasgando as ruas e sua recém formada alcatéia ocupando todo o espaço da via. Eles saltaram sobre os soldados que já estavam exaustos, destroçando com facilidade os monstros azuis, e avançaram com garras e dentes cada vez mais para dentro do Distrito, em direção à vitória.

 

 

Rafael Seiz é dono do canal Formato For Fun, um canal voltado a contar a lore do Magic em formato de vídeo-aula. Historiador por formação, usa seus conhecimentos pra pesquisar e montar os roteiros dos vídeos, mesmo que a ideia inicial não fosse essa.​

 

 

 

CNPJ: 45.802.678/0001-26